Choveu muito esses dias que passou. Não teve nem estrela. Escola e casa, uma bosta. Eu fiquei olhando a janela, assistindo o dia igual assistir televisão. Nos dias que minha mãe saiu pra trabalhar, eu olhava ela ir e quando ela voltava não tinha acontecido nada. O dia passa muito rápido na janela. Nos dias que ela ficou em casa, eu fiquei olhando ela e a barrigudinha no sofá, assistindo televisão. Barrigudinha é o nome que ela fala pra bebida que faz a virose, ela fala como se fosse amiga dela mesmo. Eu acho muito estranho. Às vezes eu apareço e ela tá falando tudo enrolado pra garrafinha. Fora o Ronaldo, a barrigudinha é a única coisa que faz minha mãe esquecer o meu nome. Menino, menino. Mas nenhum outro homem, fora eu, mesmo que eu seja só menino ainda, passou tanto tempo dentro da minha casa depois do tempo do pezão. Alguns até entraram, mas nunca ganharam presente dela. Ela logo esquece o nome deles também. Ainda bem.
Não tinha nada pra fazer mesmo, nada nada nada, então eu contava as água da chuva. As gotinhas. Só pra fazer alguma coisa mesmo. Você é muito curioso. Eu me perdi um monte de vezes, não sei de muitos números ainda, a chuva é muito mais número do que já tem na escola. Eu tentei um jeito pra não perder a conta, que era fazer um risquinho no nosso caderno pra cada gota que eu via. Fui fazendo, fazendo, fazendo sem parar. Encheu as folhas igual o céu. Chuva, chuva, chuva. Gota, gota, gota. Meu dedo de segurar o lápis chegou até a doer, fez até galo, igual quando bate a cabeça forte. Eu devo ter ficado com um galo dentro da cabeça de tanto que eu tentei contar os risquinhos. Deve ser mil, ou dez mils. Não, é muito. Deve ser menos de mil, mil é muito, mil nem dá pra contar. Com certeza é menos de mil, minha mãe trabalha muitos dias e ainda fala que ganha menos de mil. Não choveu tantos dias igual minha mãe trabalhou. É menos de mil. Nunca que eu vou descobrir a resposta, nunca, mas eu continuei rabiscando e tentando. Talvez eu até pergunto pro Pedrinho um dia, vai que ele sabe. É o que eu sei fazer, tentar é o que eu sei fazer, ficar tentando saber essas coisas da vida que não tem resposta. Ou as que tem, mas que não faz nenhuma diferença. Eu continuei e rabisquei e tentei contar, quando vi, as folhas todas do nosso caderno tinham acabado. Eu fiquei até um pouco com orgulho, mas o outro pouco de vergonha. Uma parte gostou de ficar tanto tempo prestando atenção em uma coisa só, a outra ficou com vergonha de falar que era isso que tinha feito esses dias de chuva. O que eu vou falar pra eles que são esses rabiscos? Um monte de chuva? Que burro! Eu devia ter feito em uma folha só, o que eu vou falar pra eles? Como a gente vai anotar? Que burro! Eu gastei tudo sozinho! Gastei, porque não serve pra nada! A gente nem vai conseguir contar!
Depois desse dia que acabou o caderno choveu mais um dia inteiro. Demorou tanto que eu dormi antes de ser noite, antes da hora da notícia na televisão. Quando eu acordei ainda não era dia, a luz amarela da rua é diferente então eu sabia. Tava um silêncio mas tinha um homem falando alguma coisa. Ele ficava rindo sozinho, falava sozinho, voltava e ficava rindo sozinho, ficava bravo sozinho. Ninguém respondia ele, nem tinha ninguém lá. Eu vi ele beber a barrigudinha igual da minha mãe um tempo, deve ser um amigo pra ele também. Ele tomava um gole e falava que a vida era um castigo e que não tinha santo que ia salvar a gente, que o pé sujo dele tinha a sola mais grossa que de tênis, que aquele lugar era pequeno demais pra todas as coisas que ele queria e por isso que as coisas eram assim, que a mulher dele era uma puta e o filho era um rato porque foi embora pra ficar na cidade grande.
— Seu rato! Maldito! Você gosta porque aí você pode ficar fugindo né, seu rato! Maldito!
Aí ele deu um gole e começou a chorar. Eu nunca tinha visto um homem velho assim chorar.
— Seu maldito! Rato da cidade grande, rato!
Ele ficou apertando a barrigudinha pela bunda e engolindo o cheiro dela igual tivesse bebendo.
— Foge de mim, foge, porque eu sou seu pai! Foge com a puta da sua mãe!
Eu olhei pro céu e um pedaço das nuvens tinha ido embora. Eu ouvi outro gole dele, e lá no fundo do céu até começou a aparecer umas estrelas.
— Foge de mim, chama aquele outro maldito de pai! Você nasceu pra ser um rato igual ele!
Os homens velhos acho não olham as estrelas, nem quando elas falam com ele. Cada gole que ele dava, uma estrela piscava, eu via. Era um sinal pra ele, não era pra mim, mas ele não via. Eu comecei a achar que ninguém mais via o que as estrelas tinham pra falar, que ninguém mais olhava pra cima. Eu dei três batidinhas bem de levinho na janela pra ver se ele não ouvia e olhava pra procurar e aí acabava que ia olhar o céu. Ele tinha que ver a estrela falando com ele.
— Meu Deus, tira de mim esse castigo.
A barrigudinha dele não tinha mais bunda pra apertar, não tinha mais nada. Olha pra cima, seu burro!
— Meu Deus!
Deus do homem da barrigudinha, fala com ele mais alto! Ele tá te chamando! Deus da Janete, ajuda o outro deus. Mas ele não ouviu, não adiantou nem eu ajudar ele a chamar. Ele começou a chorar mais ainda e dar chute em um saco de lixo, chutava, chutava, chutava. Jogou a barrigudinha dele no chão e chorou, chorou, chorou igual criancinha. Nem o Pedrinho chorava assim mais. Eu comecei a ficar triste no meu peito de ver ele chorar tanto que até decidi sair da janela. Quando eu deitei, fiquei pensando no que ele falou do filho dele ser um rato. Um rato na cidade grande. Eu acho que todo mundo é um pouco de bicho, depende de onde a pessoa tá. Eu dormi pensando em todos os bichos que cada um podia ser e até que se podia deixar de ser sapo e ser outro bicho.
Quando o sol bateu no meu rosto, eu levantei em um pulo. Vesti minha bermuda, meu chinelo, peguei o caderno, meu pote e sai correndo pela porta. Não vi minha mãe, acho que ela também não me viu. Eu tava com saudade da minha vida, do cheiro da lama, da sujeira debaixo da unha, de enfiar o pote e acreditar que alguma coisa nova ia aparecer. Cada passo que eu dava, eu sentia o chinelo querendo sair do pé, eu sentia que ele tinha ficado pequeno, eu sentia o cheiro da lama. Cada passo e eu comecei a lembrar que eu tinha usado todas as folhas do caderno. Que burro! O que eu vou falar? Comecei a ir mais devagar, mesmo que o cheiro da lama me fizesse até arrepiar no braço. Eu precisava de um tempo pra fazer na minha cabeça alguma coisa que ia funcionar. Mas olha, a gente pode usar esses rabiscos pra fazer outras coisas, esse pode ser um A e esse um E, esse pra ser um B só precisa arredondar. Dá pra desenhar em cima também, tranquilo! Tranquilo, vai ser só um jeito diferente de fazer, mas tranquilo.
O Will e o Pedrinho já tavam lá, mas não tinha ninguém dentro do rio. Eles tavam sentados na margem, nem os dedos ficavam na lama. De cima da cabeça deles, eu vi uma fumaça subindo. Na hora, eu senti um aperto no peito, não sei o porquê. Deus da Janete. Eu segurei o caderno com mais força e continuei andando. Meu pé não cabia mais no chinelo, eu sentia machucar no meio do dedão e do que vem depois dele. Nenhuma criança corria nem jogava bola, elas conversavam em rodinha na rua. A Amanda e as papagaias tavam cochichando e olhando pro Toninho e ele tava parado olhando pra elas.
— Vai Pedrinho, fuma aí!
— Eu não quero essa porcaria aí não.
O Will ficava tentava enfiar na boca do Pedrinho um cigarro desses de homem velho, com a ponta marrom. O Pedrinho ficou fugindo e o Will enfiava na boca e soltava fumaça.
— Vai, é daora!
— Eu não quero!
— Vai Pedrinho, a gente tá grande demais pra ficar só de brincadeirinha. Até você!
Eu senti um vazio no meio do meu peito, era como se ele tivesse esquecido o meu nome também.
— Eu não quero fumar! É coisa de tonto fumar, fedido. Eu não quero.
O Will enfiou o cigarro na boca igual ele enfiava os dedos com crocante.
— Tonto? Tonto é você que tá com medo de voltar cheirando pra sua mãe! Criancinha! Bebezinho!
O Will ficou insistindo, mas o Pedrinho tinha aprendido a insistir também. Do jeito dele. Eu não tive coragem de avisar que eu tava ali, ainda não queria sentar com eles. Ainda precisava entender o que o Will ia querer de mim. Eu também não queria fumar cigarro de velho não.
— Vai brincar então, vai brincar na lama! Não é criança que você quer ser? Vai pular na lama então!
Burro, seu burro! Ninguém quer saber desse caderno mais, desse pote. Burro! Você achou que eles iam ligar que você gastou as folhas? Eu queria esconder as coisas que eu trouxe comigo, não queria que ninguém mais visse, não queria que ninguém desse risada de mim. Queria tirar o chinelo pra ninguém ver que ele já tava pequeno.
— E que graça tem essa fumaça ai? Não tem graça nenhuma! É fedido, credo.
Eu apareci igual um fantasma e peguei o cigarro da mão do Will.
— E desde quando tudo tem que ter graça? Não tem santo pra salvar a gente não!
Eu falei igual o velho chorão. Enfiei o cigarro na minha boca, esperando o sabor do dedo crocante. A fumaça desceu igual areia na minha garganta. Cortou todas as palavras que eu sabia usar, encheu meu olho até de água. Senti vontade de tossir, mas não quis mostrar. A vida é um castigo. Quando eu deixei a fumaça sair da minha boca, eu senti minha cabeça ficar leve, como se ela fosse cair fora do pescoço. Isso eu gostei.
— Tudo você quer achar graça, Pedrinho. Me fala uma coisa que tem graça aqui?
Eu vi que o Will tava orgulhoso de mim. Vi de canto de olho, no meio da fumaça.
— Nada tem graça! Nem é pra ter também!
A vida é um castigo. Eu devolvi o cigarro pro Will e sentei em cima do caderno, dei um jeito de enfiar o pote atrás do mato. Quando eu fui coçar meu nariz, percebi que meus dedos tinham ganhado um cheiro. Percebi que os meus dedos tinham o meu cheiro, o cheiro do Will, o cheiro da Dona Nilze, acho que até o cheiro daquele homem velho. O cheiro da nossa gente. Era isso que tava faltando pra mim.
O Will não precisava mais que eu distraísse ninguém porque ele roubava os cigarros dentro de casa mesmo. A mãe dele não via ele, ela não precisava ser distraída. A gente começou a fumar e via as outras pessoas conversando em rodinha. A Amanda e as papagaias, o Toninho e os outro muleques, as outras pessoas que já foram crianças também. O Pedrinho ganhava nosso cheiro, mesmo que ele não quisesse. O João andava com aquele sorriso corado no rosto, mudava de rodinha em rodinha. Ele não vinha na nossa roda, só a gente sabia que o colar devia ser de plástico, as outras pessoas ainda achavam que brilhava de verdade.
— Mano.
O Will balançava a cabeça quando ele passava.
— Esse muleque, porra.
Ele divide a fumaça do cigarro comigo, divide as palavras dele comigo, divide a raiva dele comigo. Ele divide o jeito dele de viver comigo.
— Esse muleque precisava levar uns tapas na nuca, isso sim.
Quando os cigarros da mãe dele acaba antes do dia, a gente fica escondido na esquina da Dona Alzira esperando ela jogar os cigarros quase no fim pela janela. A gente vê eles brilhando no alto, fugindo pela janela, algumas vezes ele corria e pegava, outras vezes eu corria e pegava. Virou esporte pro Will tentar pegar enquanto eles ainda tavam no ar, quando eles ainda tinham o calor de outra boca. Ele pulava e o Bolha pulava junto, comendo ainda mais ar, ficando ainda mais redondo. A Dona Alzira fumava um cigarro atrás do outro e, por esporte, eu e o Will também. Ele vivia falando que tava grande demais pra ficar aqui, que ele já não cabia mais. Não cabia em casa, não cabia na cama que tinha no quarto, não cabia no rio, não cabia na margem. Não cabia nem pra se esconder atrás do mato mais. Ele não cabe mais no nosso lugar.
No primeiro dia que eu fumei, quando eu voltei pra casa, eu guardei o caderno bem no fundo da minha gaveta e eu pensei que talvez tivessem passado mesmo mil dias, ou até mesmo dez mils dias. Eu fiz uma coxinha com os meus dedos e cheirei antes de dormir. O cheiro tinha entrado debaixo da minha unha do mesmo jeito que a lama fazia, no mesmo espacinho. Eu gostei daquele cheiro crocante e minha cabeça falou no meu ouvido que eu tava grande demais. Eu senti no meu pé, entre o dedão e o dedo do lado dele.